Livros Que nos Mordam

Uma vez, andando por Praga com o filho de um colega, Kafka parou diante da vitrine de uma livraria. Vendo o jovem inclinar a cabeça de um lado para o outro a fim de ler o título dos livros enfileirados, ele riu: "Então você também é louco por livros, sua cabeça sacode de tanta leitura?". O jovem assentiu: "Acho que eu não poderia viver sem livros. Para mim eles são o mundo". Kafka ficou sério. "Isso é um erro", disse. "Um livro não pode tomar o lugar do mundo. É impossível. Na vida tudo tem seu sentido e seu propósito, e para isso não há substituto permanente. Um homem não pode, por exemplo, dominar sua própria experiência por meio de outra personalidade. É assim que está o mundo em relação aos livros. Tentamos aprisionar a vida num livro, como um canário na gaiola, não funciona... Lemos para fazer perguntas"!


A intuição de Kafka de que, se o mundo tem coerência, é uma coerência que não podemos compreender plenamente - se o mundo oferece esperança, ela "não é para nós? Num ensaio famoso, Walter Benjamin observou que para entender a visão de mundo de Kafka "não se deve esquecer o modo de ler de Kafka", comparado por Benjamin ao do Grande Inquisidor de Dostoievski no conto alegórico de Os irmãos Karamazov: "Temos perante nós", diz o Inquisidor ao Cristo retornando à Terra, "um mistério que não podemos apreender e, justo por ser um mistério, tivemos o direito de pregá-lo, de ensinar ao povo que o que importa não é a liberdade nem o amor, mas o enigma, o segredo, o mistério diante do qual eles devem se curvar - sem reflexão e mesmo sem consciência". Um amigo que viu Kafka ler em sua escrivaninha disse que ele lembrava a figura angustiada de um leitor de Dostoievski, que parece em transe enquanto lê o livro que segura.

Kafka desenvolveu uma maneira de ler que lhe permitia decifrar as palavras ao mesmo tempo em que questionava sua capacidade de decifrá-las, persistindo em compreender o livro e contudo, não confundindo as circunstâncias do livro com as suas próprias - como se estivesse respondendo tanto ao velho professor, que ridicularizava sua falta de experiência para entender o texto, como aos seus ancestrais rabínicos, para os quais um texto precisa provocar continuamente o leitor com a revelação.


Dizer que as leituras sempre ultrapassam em quantidade os textos que as geram é uma observação banal, mas algo de revelador sobre a natureza criativa do ato de ler está presente no fato de que um leitor pode se desesperar e outro rir exatamente na mesma página. As histórias de Kafka, nutridas pela experiência de leitura dele, ao mesmo tempo oferecem e tiram a ilusão de compreensão. É como se elas corroessem a arte do escritor Kafka a fim de satisfazer o Kafka leitor.

Em 1904, Kafka escreveu ao amigo Oskar Pollak: "No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz, como diz você? Meu Deus, seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios. É nisso que acredito".

Alberto Manguel
Uma História da Leitura