Ver é Inquietar-se

 

Num momento em que a visibilidade e a transparência da comunicação determinam o quanto somos reconhecidos nos diferentes grupos em que atuamos, não deixa de ser interessante pensar no velho cartão postal como uma mídia aberta, com imagem e texto, que circulou livremente durante décadas mundo afora. Hoje, foi substituído pelos aplicativos tipo Instagram, WhatsApp, entre outros, locais de livre e imediata circulação de imagens e textos. Sou colecionador de cartões postais e, de tempos em tempos, eu me surpreendo com mensagens inscritas no verso dos cartões, que operam como codificações específicas entre os interlocutores. Sim, há entre os polos comunicacionais que trocam cartões algumas evidências e alguns segredos. Apesar da mensagem circular aberta numa rede de distribuição, nem todos podem decodifica-las integralmente. E isso é mágico, pois basta um rápido olhar nas redes sociais para encontrarmos os mesmos enigmas, de simplicidade impressionante, que dão continuidade a uma comunicação especial que domina a esfera da privacidade.

Recentemente, ao adquirir um lote de cartões postais de Rio Claro (minha cidade) e de Ouro Preto, encontrei em um deles a seguinte inscrição: “Se a realidade não é brilhante como nos sonhos, tem, pelo menos, a vantagem de existir”. Segundo quem remeteu (e selecionou) esta imagem, a autoria do texto é de Machado de Assis. O cartão postal que mostra uma mulher fotografando uma criança, é do chafariz de Marília e Dirceu, dois amantes, e remete ao poema publicado no final do século XVIII que marcou o drama da literatura brasileira do período.


Aliás, muito interessante para pensar a polêmica essência da imagem técnica, representação que perpassa o nosso cotidiano. Ao associarmos a mensagem à imagem e ao texto, criamos uma nova imagem, que contém em si uma série de outros atributos. Temos então a oportunidade de entender a potência de um simples artefato criado em sincronia com os avanços da indústria gráfica, cuja finalidade era acelerar a comunicação. O fragmento machadiano é um raro achado num mar de textos banais trocados nesse tipo de correspondência. Como afirmei acima, me encanta os textos que insinuam alguma imprevisibilidade. Afinal de contas, como “ler” a complexidade da mensagem (imagem mais texto) que deveria ser simples pela natureza do suporte, mas que se torna um enigma quando olhado com os olhos de hoje?

Outro texto, tão instigante quanto o anterior está anotado neste cartão postal da Estação da Estrada de Ferro Central, de Recife, circulado em 1905. Nele se lê: “Vou trabalhar para ver se decifro seu enigma, embora não tenha prática alguma. Amigáveis saudações.” Mais uma vez, como entender essa comunicação dotada de vazios, de lapsos que dependem de outros postais, talvez já perdidos. Pensando de outro modo, a estação de trem é o local de chegadas e partidas, de deslocamentos tão velozes quanto o movimento do cartão postal. Operar nessa instância da comunicação é tentar buscar a enorme capacidade que este tipo de correspondência tem de revelar o incomum, que provavelmente passou despercebido pelos inúmeros olhos desatentos que foram sensibilizados com a imagem e o texto.


Olhar com certa delicadeza para o passado é tentar entender seus nexos. Ao contemplá-los, defende André Rouillé, “o imaginário dá lugar à percepção; o passado e a memória, à presença; o mítico longínquo, à realidade próxima: simplesmente visível, sem pano de fundo”.

É inestimável o valor psicossocial da troca de comunicação veiculada através dos velhos cartões postais, que impressionam pela capacidade de informar o essencial. Produzido para ser efêmero e descartável, ganhou sobrevida quando se tornou objeto colecionável. Assim como hoje idealizamos um futuro sem memória do passado, devido à velocidade de transmissão da informação e sua imediata descartabilidade, podemos ser mais otimistas se pensarmos que os cartões postais, também filhos da aceleração do seu tempo, permaneceram esquecidos em caixas e álbuns. Rejeitados por seus herdeiros e responsáveis, ganham relevância ao emergirem como peças “quase únicas” do incompleto quebra-cabeça de inestimável importância cultural.

Como afirma Didi-Huberman, “o objeto, o sujeito e o ato de ver jamais se detêm no que é visível (…) Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta”.

Autor: Rubens Fernandes Junior
Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).