Imagens ardem, museus queimam

 


“Não se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de incêndio”, disse Didi-Huberman. Trata-se de um desses momentos em que a teoria, para dar conta da imagem, precisa recorrer à poesia. Quando ele dizia que “as imagens ardem”, mesmo que tenha nos alertado sobre o risco, não poderíamos imaginar que sua metáfora se confrontaria com uma literalidade tão estúpida.

O real a que ele se refere é, de certo modo, o oposto disso que chamamos vulgarmente de realidade (essa “nossa realidade” que, entre outras coisas, permite que um museu chegue ao ponto de incendiar-se), um estado de exceção que tende a se conservar, uma condição à qual nos habituamos, que tomamos como dada porque já não acreditamos poder transformá-la. Enquanto nossa realidade é evidentemente opressora, o real a que Didi-Huberman se refere é algo de uma ordem sempre inconformista, é a parte rebelde da cultura, não se aceita como mera domesticação da natureza. É uma dimensão da história em que as tensões do passado permanecem vivas e perturbam a linha do tempo em que os fatos se sucedem. O real é o lugar que revela sem cessar as fissuras do processo civilizatório e que faz retornar tudo aquilo que ele recalca.


Por sua vez, a imagem é a própria inflamação que surge na carne desse real que não se deixa codificar. Ela é mais do que um discurso sobre o mundo, ela é o seu sintoma. Chamuscada pelos acontecimentos, algo da imagem surge à nossa revelia, assim como as cicatrizes. Dizemos muitas coisas por meio dela, mas ela segue dizendo por si mesma o que para nós se torna interdito. Mesmo que operada por uma técnica, algo na imagem permanece como transbordamento de pulsões que as gramáticas não conseguem organizar. Por sua vez, ela é capaz de nos tocar com o mesmo fervor. Nem tudo nela pode ser decifrado pelas metodologias de que o olhar se mune. As imagens falam a um olhar que é corpo, que é desejo, que é selvagem. Daí, elas ardem em nós.

As condições implicadas nessa relação intensa com a imagem não poderiam ser mais avessas àquelas que permitem o incêndio de um museu. É porque as imagens queimam, ou melhor, é para que sejam impedidas de queimar que as imagens são deixadas sob o risco da literalidade do fogo. Já não se trata do fogo da paixão (do pathos). É só o fogo frígido do fio descascado, das faíscas dos motores, dos produtos inflamáveis, da bituca de cigarro, aquele ignorado pelos orçamentos e bem mapeado pelas apólices de seguro.


Para além do jogo de palavras, o texto de Didi-Huberman nos ajuda a pensar o que aconteceu. É bem evidente que as sensibilidades cultivadas pela imagem emperram as decisões pragmáticas que “nossa realidade” exige. A arte sempre instaura perguntas no momento em que a autoridade quer impor respostas imediatas. As imagens são críticas, elas exigem e expõe os critérios, instauram crises. A razão pragmática não suporta esse estado patológico de dúvida. É preciso agir, buscar uma solução. A incineração literal é justamente aquilo que os fascismos oferecem de forma recorrente como resposta definitiva para as diferenças que não toleram (os nazistas se referiam às práticas nos campos de extermínio justamente como “solução final”).

Não se trata aqui de fantasiar um incêndio arquitetado. Mas sim, ele tem uma arquitetura (da qual o MBL berrando na porta dos museus é apenas sua fachada mais tosca e fácil de enfrentar). Também não é que nos querem ignorantes. Mais sutil que isso, nos querem ponderados, razoáveis, eficientes, até mesmo instruídos, dotados de aptidões que respondam não necessariamente às urgências (às feridas), mas às prioridades pactuadas (emprego, polícia, asfalto, até mesmo mais escolas, com mais aulas de ciência e matemática e menos de filosofia e arte).


Rancière observou que a arte tem sempre uma vocação política porque é capaz de intervir no modo como se partilha o que é “comum”, a linguagem, a percepção, o tempo, o sensível, essas coisas todas que estão aí para todos, mas que tendem a ser distribuídas de forma desigual. Se o incêndio revela um projeto, não é tanto o de impedir a instrução, mas o de modular e conter as sensibilidades, inclusive entre as elites bem formadas, que passeiam pelos museus do mundo, mas que passam longe dele quando voltam às prioridades de suas vidas produtivas. Essa “partilha do insensível”, se assim podemos dizer, não cria propriamente consenso, mas consentimento. Na verdade, apatia! Quando as imagens deixam de arder, quando ficamos anestesiados, quando a arte e a cultura se confundem com a hora do recreio que se opõe à prioridade do trabalho, museus pegam fogo.

Didi-Huberman não ignorou essa possibilidade: “frequentemente, as lacunas são resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé. O arquivo é cinza, não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu. É ao descobrir a memória do fogo em cada folha que não ardeu, onde temos a experiência — tão bem descrita por Walter Benjamin, cujo texto mais querido, o que estava escrevendo quando se suicidou, sem dúvida foi queimado por alguns fascistas — de uma barbárie documentada em cada documento da cultura”. O fogo literal almeja apagar o fogo poético. Mas acaba por revelá-lo.


O Museu Nacional resistiu o quanto pôde não tanto pela erudição nele investida, mas graças aos corpos que, apesar de tudo, ainda ardiam pela imagem. É apenas por uma condição sintomática que insistimos em devotar nossas vidas ao estudo das imagens e à prática da arte. Ou, como vimos nesse episódio, foi pela paixão – não pela renovação da bolsa Capes ou por mais um tópico no Currículo Lattes – que pesquisadores arrombaram portas para resgatar alguns artefatos. Ali, era o fogo resistindo ao fogo.

Resta como esperança a vocação que a imagem tem para a sobrevivência. Ela se expressa também nas cinzas, e ainda mais intensamente. Se, como sugeriu Benjamin, todo monumento da cultura é também um monumento da barbárie, as ruínas deixadas pela barbárie expõem os sintomas da cultura. Já não se pode esconder com artifícios burocráticos o tamanho da dor aí implicada, como se cultura, arte e memória fossem penduricalhos que não fazem falta quando quebram. O Museu Nacional é agora uma ferida aberta e dolorida que não se pode mais esconder.

Autor: Ronaldo Entler
Jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).