Enunciação Literária

 


Quando alguém "pega a palavra", implícita ou explicitamente dizendo “eu”, coloca imediatamente em cena outro alguém que, como seu interlocutor, o ouve ou irá lê-lo. Essa cena, que se repete recorrentemente em qualquer sociedade, com a utilização de qualquer língua, constitui a enunciação. É pela enunciação que a língua é posta em ação e, por isso mesmo, está só pode ser estudada em seu processo enunciativo: Quem está falando? Para quem se fala? Como se configuram as pessoas que falam e para quem se fala?

Essas perguntas indiciam outros elementos importantes para o entendimento do processo: o tempo e o espaço em que se situam as pessoas que estabelecem o diálogo. O eu, a primeira pessoa do discurso, insere-se em um contexto histórico-social e dirige-se necessariamente a um tu/você, segunda pessoa, com a qual se comunica linguisticamente. A diversidade de situações que enquadram o diálogo leva a uma diversidade de discursos com que lidamos o tempo todo. Quando se atende ao telefone ou se responde a um e-mail, quando se discute com o parceiro amoroso ou com um adversário político, quando se ouve um sermão religioso ou um discurso publicitário, mudam-se as cenas enunciativas e os discursos que as enquadram.

É nesse conjunto de experiências humanas que se institui a enunciação literária, justamente a encenação do próprio jogo da linguagem, a encenação das pessoas que falam. A enunciação, nesse caso, desdobra-se em uma pluralidade de “eus” e “tus”, que se relacionam numa cadeia enunciativa assumidamente representada. Estabelece-se não apenas uma relação entre interlocutores reais − o autor empírico, aquele que escreveu o texto, o leitor que toma o texto para ler −, como também entre interlocutores ficcionais – o narrador, o narratário (aquele a quem o narrador se dirige textualmente), os personagens, além de figuras textuais como o autor e o leitor implícitos, resultantes das estratégias adotadas pelo autor do texto. Tudo isso se desdobrando infinitamente, em cada performance do texto e da leitura. Tal desdobramento pode evidenciar o caráter intertextual, muitas vezes metalinguístico (a linguagem mostrando o seu próprio funcionamento), mas sempre mutável, sempre histórico. Isso porque cada cena enunciativa pode remeter a outras, sejam voltadas para o mundo, sejam voltadas para outros textos literários.

Nesse processo, o domínio discursivo ficcional relaciona-se com outros domínios discursivos, agrupando-se em textos e gêneros diversos. A enunciação ficcional pode, assim, incorporar outros discursos e modalidades de discurso, assimilá-los, mas a proposta literária de interação é, em princípio, diferenciada, já que se vale de uma arquitetura que caracteriza o trabalho criativo de um fazer artístico.

Autor: Ivete Lara Camargos Walty
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-PUC Minas